Direitos Fundamentais e relações de emprego

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9 de April de 2016
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Direitos Fundamentais e relações de emprego

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Direitos Fundamentais: a sua eficácia horizontal nas relações de emprego no Brasil

O presente artigo analisa a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares – a denominada “eficácia horizontal” -, mais especificamente no âmbito das relações de emprego. Inicialmente, faz-se uma breve análise conceitual do tema direitos humanos e direitos fundamentais, partindo para a análise da incidência imediata (ou direta) dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, buscando-se, ao final, parâmetros para a aplicação desses direitos nas relações de emprego, com o desiderato de nortear as decisões judiciais. 

1. Introdução

A Constituição Federal de 1998, tida como Constituição Cidadã, é, de fato, um marco histórico. Avançadíssima, traz em seu arcabouço jurídico uma extensa relação de direitos e garantias fundamentais, que devem nortear tanto a relação entre particulares e Estado (prisma vertical) quanto a relação de particulares entre si (prisma horizontal).

Precisamos, pois, adaptar as disposições de nosso texto maior à triste e dura realidade brasileira; mais especificamente, à do trabalhador brasileiro.

O mundo vivencia a pós-modernidade, em que impera a coisificação das relações sociais e a descartabilidade, de um modo geral, do ser humano. A tecnologia – ou melhor, a forma de sua utilização – parece ter reduzido ainda mais o nosso tempo, porque diluiu o trabalho em todos os momentos de nossa vida. É tarefa cada vez mais árdua desvencilhar-se, apartar-se do trabalho.

O nível de cobrança dos empregados tem aumentado de maneira substancial. Diferentemente do modelo fordista de produção, em que se exigia apenas o tempo do trabalhador na fábrica, o que se tem hodiernamente é que não só o tempo, como também a alma do trabalhador é exigida. É necessário, no famoso jargão empresarial, “vestir a camisa da empresa”, vincular-se aos seus valores – ainda que dissidentes dos valores do próprio empregado, chamado eufemisticamente, agora, de “colaborador”. Uma relação de poder sutil e, ao mesmo tempo, esmagadora. Asfixiante.

É evidente que o Direito do Trabalho não poderia ficar imune a esse sintoma social. Melhor: talvez seja exatamente o Direito do Trabalho o ramo a sofrer as maiores influências, os maiores impactos sociais desse novo mundo que se nos aparenta.

Diante desse quadro, o nosso maior objetivo é estreitar a relação entre a Constituição e esse nosso novo tempo, buscando estabelecer parâmetros para a aplicação dos direitos fundamentais, especialmente parâmetros para a aplicação dos direitos fundamentais na relação entre particulares, sempre marcada pelo forte poder da autonomia da vontade.

O presente ensaio, portanto, volta-se para a aplicação dos direitos fundamentais na relação entre particulares. Mas não, impõe frisar, entre particulares que estão em pé de igualdade. Visa-se, aqui, a estudar a aplicação e incidência dos direitos fundamentais nas relações de emprego, ontologicamente marcada pela superior posição econômica do empregador ante o empregado.

2. Direitos Humanos e DIREITOS Fundamentais – ANÁLISE CONCEITUAL

O presente trabalho começa com uma incerteza: não há conteúdo semântico claro e unívoco acerca da expressão “direitos humanos”.

Enquanto fonte – isto é, de onde vieram -, pode-se afirmar que os direitos humanos nasceram, inicialmente, como direitos naturais universais; em seguida, desenvolveram-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para, finalmente, encontrarem a plena realização como direitos positivos universais, em paráfrase a Norberto Bobbio (1992, p. 30).

Eles possuem, portanto, origem pré-estatal, ligados ao direito natural e caminham até os dias de hoje, sendo positivados em ordenamentos jurídicos de diversos Estados e inseridos em declarações e tratados internacionais.

Enquanto fundamento – isto é, o porquê de sua existência -, os direitos humanos dizem respeito à própria essência do ser humano, em virtude puramente de sua qualidade humana.

É tarefa tão árdua tentar conceituar direitos humanos que, quando nos empenhamos a tal desígnio, o resultado acaba por desaguar em tautologias, do tipo: direitos humanos são aqueles direitos que pertencem ao homem enquanto homem. (BOBBIO, 1992)

Há uma explicação para essa dificuldade. É que os direitos humanos possuem uma carga histórica muito grande e, gradativamente, o seu significado passa por mutações ao longo do tempo. Daí a compreensível dificuldade em encontrar um modelo conceitual apriorístico, o que leva à criação, por parte da doutrina, de diversas denominações. Cada uma delas com o desiderato de tentar extrair da melhor maneira possível – leia-se: com a maior precisão terminológica possível – esse conteúdo semântico, ainda não revelado de modo absoluto, dos “direitos humanos”.

Daí, nascem as expressões “direitos do homem”, “direitos subjetivos”, “direitos individuais”, “liberdades fundamentais”, “direitos fundamentais do homem”, dentre outras.

Para o presente trabalho, vamos concentrar os nossos esforços para fornecer contornos mais nítidos à distinção que se entende como a mais frutífera, a saber: “direitos humanos” e “direitos fundamentais”.

Nesse intento, a abalizada lição de Ingo Sarlet (2007, p. 35) aponta que:

[…] não há dúvidas de que os direitos fundamentais, de certa forma, são também sempre direitos humanos, no sentido de que o seu titular sempre será o ser humano, ainda que representado por entes coletivos (grupos, povos, nações, Estado) […]

No entanto, prossegue o autor:

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2007, p. 35-36)

Conclui-se, do escólio, que as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos” possuem como traço comum a titularidade de um direito direcionada a um ser humano, e, como traço distintivo, a sua positivação, ou não, em determinado ordenamento jurídico vigente.

Nesse aspecto, pode-se afirmar que os “direitos humanos” compreenderiam a pré-história, uma fase mais antiga, portanto, dos direitos fundamentais, já que antecederam o reconhecimento destes últimos pelo direito positivo de interno dos Estados.

A positivação dos direitos humanos em um determinado ordenamento jurídico, alçando-os, pois, à categoria de “direitos fundamentais”, é, a bem da verdade, uma técnica para conferir maior efetividade aos direitos humanos, os quais possuem, em sua origem, um caráter mais ligado a uma espécie de “vetor axiológico universal” do que propriamente um direito subjetivo.

Essa técnica da positivação dos direitos humanos como forma de torná-los mais efetivos remonta ao lúcido comentário de Norberto Bobbio (1992, p. 25), quando afirma que “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”.

O problema que temos diante de nós, ainda segundo Norberto Bobbio (1992, p. 25), não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. Seria, portanto, um problema mais jurídico, e não filosófico.

O tema também é abordado por Pablo Jiménez Serrano e Sidney Barletta Júnior (1998 p. 60), que assim afirmam:

[…] a questão técnica que se apresenta na evolução das declarações de direitos foi a de assegurar sua efetividade através de um conjunto de meios e recursos jurídicos, que genericamente passaram a chamar-se garantias constitucionais dos direitos fundamentais. Tal exigência técnica, no entanto, determinou que o reconhecimento desses direitos se fizesse segundo sua formulação jurídica mais caracterizadamente positiva, mediante sua inscrição no texto das constituições, visto que as declarações de direitos careciam de força e de mecanismos jurídicos que lhes imprimissem eficácia bastante.

Na mesma linha de raciocínio, o professor Fabio Konder Comparato (2008, p. 59) apresenta o pertinente comentário:

[…] o reconhecimento oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá muito mais segurança às relações sociais. Ele exerce, também, uma função pedagógica no seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos, os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva.

Sem pretender esgotar o tema, apresenta-se, como conceito de Direitos Fundamentais, o esboçado por Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 54), a saber:

Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.

Outro ponto que não pode deixar de ser mencionado se refere à esquematização histórica dos direitos humanos, muito utilizada pela doutrina.

Nesse quadro esquemático, parte-se da noção de direitos individuais civis e políticos da primeira dimensão, que data da Revolução Francesa, indo aos direitos econômicos e sociais da segunda dimensão, do pós-Segunda Guerra Mundial, conforme leciona Israel Jean-Jacques (2005, p.08).

A doutrina também aponta uma terceira dimensão no período contemporâneo, que estaria vinculada aos direitos de solidariedade e fraternidade. A propósito, essa terceira dimensão dos direitos humanos coincide com o período de sua internacionalização.

A verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como afirma Flávia Piovesan (2006, p. 115), surge em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial, período marcado pela lógica da destruição e desconsideração da pessoa humana.

Dessa breve exposição, pode-se concluir que os Direitos Humanos possuem origem pré-estatal, vinculados ao Direito Natural, e foram se desenvolvendo como direitos positivos de cada Estado, sendo incluídos em suas respectivas Constituições. Hodiernamente, vivencia-se a internacionalização dos direitos humanos. Sua carga histórica e a sua constante mutação ao longo do tempo dificultam a sua conceituação exata, levando a doutrina a criar diversos nomes, dentre os quais apontamos como mais relevantes “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais”, que possuem como traço distintivo a sua positivação, ou não, em determinado ordenamento jurídico. De qualquer maneira, é certo que ambas as expressões possuem em sua essência a característica de direcionar ao ser humano a titularidade de um direito inerente à sua própria condição humana e, exatamente por isso, inalienável.

3. Eficácia Horizontal Imediata dos Direitos Fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro

Os Direitos Fundamentais surgiram, inicialmente, como garantias do cidadão frente ao Estado. Ao cidadão, portanto, era conferida a possibilidade de invocar, em desfavor do Estado, um fazer ou um não fazer. Uma eficácia, como se pode notar, analisada sob um prisma vertical. Nesse sentido, Christiana Oliveira (2010, p. 308-309) afirma que:

[…] a concepção de direitos humanos surgiu, originariamente, com o fito de mediar a relação entre Estado e pessoas (relação vertical), tendo aquele a obrigação não só de respeitá-los, mas também de protegê-los, garanti-los e promovê-los, a corroborar a respectiva eficácia vertical, premissa que igualmente se aplica no que tange aos direitos fundamentais.

No entanto, a teoria da eficácia dos Direitos Fundamentais, até então encarada sob um viés unicamente vertical – entre particular e Estado -, evolui e passou a admitir também a sua eficácia horizontal, isto é, entre particulares, conforme valioso escólio de Ingo Sarlet (2007, p. 402-403):

Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada separação entre Estado e sociedade, entre o público e o privado, os direitos fundamentais alcançavam sentido apenas nas relações entre indivíduos e o Estado, no Estado Social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade cada vez mais participa ativamente do exercício do poder, de tal sorte que a liberdade individual não apenas carece de proteção contra os poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera que as liberdades se encontram particularmente ameaçadas.

Essa incorporação da eficácia dos Direitos Fundamentais também às relações privadas (eficácia horizontal) decorreu, como se pôde depreender, de uma conclusão de que, após a ruptura de paradigma do Estado Liberal para o Estado Social, a própria sociedade estava a participar intensamente do exercício do poder, o que gerou desigualdade dentro do próprio seio social.

Dessa forma, passou a ser necessário proteger o cidadão não só contra os arbítrios do Estado, mas também contra os arbítrios praticados pelos seus próprios pares, os quais poderiam causar grandes ameaças às liberdades humanas.

Dentro da realidade brasileira, o fato curioso é que, diferentemente, a exemplo, da Constituição de Portugal, que prevê expressamente que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (art. 18º.1 da Constituição de Portugal. grifo nosso), a  Constituição Federal de 1988 não diz nada expresso a respeito da aplicação dos fundamentais às relações entre particulares, isto é, silencia a respeito de sua eficácia horizontal.

No entanto, há uma forte construção, tanto no âmbito doutrinário quanto jurisprudencial, sobre a eficácia horizontal no ordenamento jurídico pátrio.

Ao lado dessa temática referente à possibilidade de aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, é necessário investigar, ainda, de que maneira, de que forma ocorre essa aplicação.

Das teorias existentes acerca da forma de aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ficaremos com a adotada pelo Brasil, que é a eficácia imediata (ou direta). Sob o pálio dessa teoria, os Direitos Fundamentais podem ser invocados diretamente nas relações privadas independentemente de qualquer tipo de mediação ou intervenção do legislador.

Nesse exato sentido é a lição de Daniel Sarmento (2006, p. 204-205), que assim expõe:

A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas foi defendida inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, a partir do início da década de 50. Segundo ele, embora alguns direitos fundamentais previstos na Constituição alemã vinculem apenas o Estado, outros, pela sua natureza, podem ser invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer mediação por parte do legislador, revestindo-se de oponibilidade erga omnes.

Cumpre afirmar, todavia, que os adeptos da teoria da aplicação imediata dos Direitos Fundamentais não defendem a sua aplicação de maneira rígida, isto é, sem levar em consideração as particularidades desta incidência, sob pena de se aniquilar a autonomia da vontade. Não se está, pois, defronte de um radicalismo extremado.

Embora a teoria da eficácia imediata não tenha tido grande aceitação na Alemanha – seu nascedouro -, ela é majoritária na Espanha, Portugal, bem como no Brasil.

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da aplicabilidade imediata vem expressamente inserido no §1º do art. 5º da CF/88, que assim reza:

Art. 5º, § 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. (grifo nosso)

Analisando especificamente o caso da Constituição brasileira, Daniel Sarmento (2006, p. 235) aborda, com mestria, que:

Pelo menos no ordenamento brasileiro, que tem em seu cimo uma Constituição fortemente voltada para o social, não é possível conceber tais direitos – os fundamentais – como meros limites ao poder do Estado em favor da liberdade individual. A Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem apenas aos governantes, mas a todos, que têm de conformar seu comportamento aos ditames da Lei Maior. Isto porque, a Constituição de 1988 não é apenas a Lei Fundamental do Estado Brasileiro. Trata-se, na verdade, da Lei Fundamental do Estado e da sociedade, porque contém os principais valores e diretrizes para a conformação da vida social no país, não se limitando aos papéis mais clássicos das constituição liberais, de organização da estrutura estatal e definição das relações entre governantes e governados.

A aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares se justifica no Brasil exatamente por ser um país tão desigual e assimétrico. O grande problema, no entanto, é encontrar parâmetros para essa aplicação, já que não se mostra correto sujeitar tal relação ao mesmo regime que existe quando há, em um dos lados, a figura do Estado.

Em nossa jurisprudência mais recente, vale o destaque para o Recurso Extraordinário 201819/RJ, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que um compositor não poderia ser excluído dos quadros da União Brasileira de Compositores (UBC) sem que fossem assegurados a ampla defesa e o contraditório. Veja-se a ementa, in verbis:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 201819, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)

Embora o julgado acima tenha buscado certo critério para a aplicação imediata dos direitos fundamentais, não é essa, infelizmente, a regra. Na maioria dos casos, a fixação de limites para a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas acaba por envolver exclusivamente uma questão – temida – de ponderação. Daí a necessidade de estabelecer critérios, com a finalidade de se evitar uma desmedida discricionariedade judicial, proporcionando maior segurança jurídica.

As decisões judiciais, de uma maneira geral, como aponta Sarmento (2006, p. 261), têm se pautado mais em um ideário de justiça do que em parâmetros jurídicos.

A incidência direta, isto é, imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é um tema que tem produzido muitos frutos em âmbito doutrinário e jurisprudencial. A nossa Constituição Federal é expressamente clara, inclusive, ao dizer que os direitos fundamentais se aplicam de maneira imediata. O que resta, agora, é traçar parâmetros para a sua aplicação; parâmetros de incidência.

4. A eficácia horizontal imediata nas relações de emprego no Brasil: uma busca por parâmetros

O Direito do Trabalho regula uma relação jurídica entre dois sujeitos que estão, por natureza, em posições diametralmente opostas: o empregador e o empregado. O primeiro detém os meios de produção e dirige o seu empreendimento como lhe parece mais conveniente e adequado para atingir os seus objetivos. Juridicamente, o ordenamento lhe confere os poderes diretivo e fiscalizador, outorgando-lhe a possibilidade de editar as ordens a serem seguidas.

O empregado, por sua vez, é o subordinado jurídico. É o que investe, sob as ordens do empregador, energia, tempo, e, como bem afirmam Maria Aurea Baroni Cecato e Ana Luisa Celino Coutinho (2009, p.112-113), “é aquele que compromete a sua própria subjetividade, isto é, a sua estrutura mental e psíquica, particularidades e emoções”.

Conforme já se evidenciou, é assente no ordenamento jurídico brasileiro a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Se assim o é, com muito mais razão é de se advogar a aplicação dos direitos fundamentais também nas relações de emprego, considerando a aludida – e evidente – desigualdade das partes envolvidas.

Nesse sentido, fica-se, por todos, com Christiana Oliveira (2010, p. 308-309), quando afirma que:

[…] além da eficácia vertical, os direitos fundamentais também apresentam eficácia horizontal, como tal entendida a que irradia seus efeitos no liame entre atores privados, entre pessoa-pessoa, sendo exigíveis nas vinculações entre os particulares e os poderes privados, em especial nas relações entre trabalhadores e tomadores de serviço, em que constituem limites à autonomia privada e à livre iniciativa. (grifo nosso)

Embora a aplicação dos direitos fundamentais deva ser mais enérgica dentro das relações de emprego, em virtude da assimetria entre os polos envolvidos na relação jurídica, é igualmente certo que não se pode impingir a essa relação a mesma rigidez da aplicação dos direitos fundamentais quando há a figura do Estado, conforme já mencionado em capítulo anterior.

Isso porque a aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego não pode eliminar a autonomia da vontade ou anular o poder diretivo do empregador. Desse modo, é perfeitamente razoável que o empregador edite regras a ser seguidas pelos empregados, desde que elas guardem relação com a atividade desenvolvida e respeitem a individualidade de cada pessoa. Ao empregador, por exemplo, é igualmente lícito admitir um empregado no lugar de outro em virtude de laços de amizade, ou por entender, intimamente, que determinado candidato, aspirante à vaga de vendedor de uma loja, possui uma personalidade mais extrovertida, capaz de atrair e conquistar mais clientes.

A análise de alguns julgados nos fornece interessantes exemplos de aplicação dos direitos fundamentais em relações de emprego.

Em um julgamento de 22.08.2012, no Recurso de Revista n° 106800-57.2009.5.09.0585, a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho julgou o recurso de uma cortadora de cana-de-açúcar que exercia a sua atividade a céu aberto, sem local apropriado para suas refeições e para o seu descanso, inclusive sem condições sanitárias e de higiene. 

Em virtude disso, ela pleiteou ao Tribunal Superior do Trabalho a majoração da indenização a título de danos morais, que foi fixada pelo Tribunal Regional da 9ª Região na monta irrisória de R$.1.000,00 (um mil reais).

O Tribunal Superior do Trabalho reconheceu a modicidade da condenação e majorou para R$.10.000,00 (dez mil reais) a indenização. Em um voto nitidamente humanista, o Ministro Relator José Roberto Freire Pimenta deixou expressamente consignado que os direitos fundamentais são dotados de eficácia horizontal, devendo ser observados, também, nas relações privadas, incluindo as de emprego. Veja-se a ementa do referido acórdão:

DANO MORAL. AUSÊNCIA DE INSTALAÇÕES SANITÁRIAS. CORTADORA DE CANA-DE-AÇÚCAR. MAJORAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO (R$1.000,00). VALOR EXCESSIVAMENTE MÓDICO. ELEVAÇÃO PARA R$10.000,00. A sociedade encontra-se em um estágio em que não se admite o desrespeito à figura do ser humano. Vive-se, atualmente, como disse Norberto Bobbio, na era dos direitos. A pessoa humana é objeto de proteção do ordenamento jurídico, sendo detentora de direitos que lhe permitam uma existência digna, própria de um ser humano. Não se vislumbra, na realidade contemporânea, nenhuma brecha sequer para o desrespeito aos direitos mínimos assegurados à pessoa. Immanuel Kant, em sua obra – Fundamentação da Metafísica dos Costumes -, já defendia que, no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade – (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 65). Adotando o pensamento citado, verifica-se que o ser humano é sujeito detentor de dignidade, pois não possui um preço nem pode ser substituído por algo equivalente. Com efeito, não se tolera mais nenhuma forma de tratamento desumano ou degradante ao indivíduo. A Constituição Brasileira de 1988, reconhecida mundialmente pelo seu caráter democrático e garantidor de direitos humanos, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como um fundamento da República Federativa do Brasil. Ademais, institui, no rol dos direitos individuais do cidadão, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante. No seu artigo 170, caput, erige o trabalho humano como fundamento da ordem econômica, que tem por fim assegurar a todos existência digna. A doutrina moderna, de maneira pacífica, entende que os direitos individuais consagrados na Constituição não se limitam mais somente à relação entre Estado e cidadão. Hodiernamente, os direitos fundamentais são dotados de eficácia horizontal, devendo ser observados, também, nas relações privadas. Ora, é de conhecimento de todos as péssimas condições de trabalho a que são submetidos os cortadores de cana-de-açúcar. O artigo 7º da Constituição Federal é de aplicação obrigatória a todos os trabalhadores, sem distinção de nenhum tipo de atividade, sendo norma de natureza cogente, e, salvo expressa dicção em contrário, de aplicação direta e imediata (artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal). A NR nº 31, por sua vez, estabelece preceitos a serem observados na organização e no ambiente de trabalho, de forma a tornar compatível o planejamento e o desenvolvimento das atividades da agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura com a segurança e saúde e meio ambiente de trabalho. O acórdão regional consignou que a reclamante, ora recorrente, trabalhava a céu aberto, sem nenhum local apropriado para refeições e descanso e, inclusive, sem nenhuma condição sanitária. Registrou, também, que o reclamado não atendia a nenhuma das regras referentes às condições sanitárias estabelecidas pela NR nº 31. Com efeito, depreende-se do acórdão regional que a reclamante, que atuava na lavoura, não possuía nenhum local para atender às suas necessidades fisiológicas no curso de sua jornada de trabalho nem para fazer suas refeições. Essa atitude patronal de não fornecer banheiros para seus trabalhadores é ofensiva à dignidade da pessoa humana, pois obrigar uma mulher a realizar suas necessidades no meio da lavoura, a céu aberto, fere a própria intimidade da reclamante, que atuava ao lado de trabalhadores do sexo masculino, cortadores de cana, no mesmo canavial. Ademais, a reclamante não possuía nenhum local para realizar suas refeições, o que fazia também a céu aberto, no meio da lavoura, da poeira e da fuligem resultante das queimadas realizadas nesses terrenos, situação que também afetava sua saúde. Ante todo o exposto, verifica-se que o valor indenizatório, mesmo após ser majorado pelo Regional, no valor de R$1.000,00, revela-se excessivamente módico e irrisório, ante a tamanha gravidade da conduta patronal e o excessivo constrangimento a que foi exposta a reclamante. […] (RR-106800-57.2009.5.09.0585, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, data de julgamento: 22/8/2012, 2ª Turma, data de publicação: 31/8/2012)

Em outro julgado, do ano de 2011, a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho se manifestou no sentido de que o uso do teste do polígrafo, conhecido como detector de mentiras, suprimia a identidade do empregado, violando, pois, a sua intimidade. Veja-se o teor da ementa:

[…] DANO MORAL CONFIGURADO. TESTE DO POLÍGRAFO. EMPREGADO DO SETOR DE SEGURANÇA DA EMPRESA AMERICAN AIRLINES. O polígrafo, o popular detector de mentiras, não é adotado em nosso ordenamento jurídico, visto que, além da eficácia duvidosa, viola princípio fundamental assegurado na Constituição da República, no caso, o de não produzir provas contra si. Além do mais, quando submetido ao polígrafo, suprime-se do empregado a identidade de trabalhador, uma vez que passa a ser objeto da atenção do empregador pela potencialidade que a empresa lhe atribui de servir como porta de entrada para algum fato criminoso, terrorista ou outro do gênero. Não bastasse, o acesso às informações íntimas contidas no fisiológico do trabalhador afronta o direito de preservação da intimidade. Em razão da hipossuficiência que é característica geral do empregado e da tensão social que sobre ele recai, decorrente do fantasma do desemprego e da alucinante concorrência que existe entre os que estão empregados e a massa de desempregados, falta ao trabalhador a liberdade de se autodeterminar e de se impor contra os atos atentatórios à sua pessoa promovidos pelo empregador, porquanto visa a proteger um bem maior, no caso, a própria sobrevivência e de sua família, e, portanto, sem alternativa, tem de sacrificar sua dignidade até onde suportar. Por esse motivo, afigura-se temerária qualquer conclusão no sentido de que o autor consentia espontaneamente em submeter-se ao detector de mentiras. O uso do polígrafo, assim, além de se tratar de equipamento em extinção em vários países, por ser incompatível com o direito das pessoas, viola, no Direito brasileiro, diversas garantias fundamentais inerentes à pessoa humana, configurando ineludível afronta à intimidade do trabalhador. Recurso de revista conhecido e provido. (RR – 73500-44.2002.5.02.0036, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, Data de Julgamento: 22/11/2010, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011)

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, também existem vários julgados que se reportam à eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais nas relações de emprego. Um interessante exemplo está no Recurso Extraordinário 161243/DF, julgado em 29.10.1996 pela 2ª Turma do Excelso Pretório.

Nesse caso, o recorrente trabalhava para uma empresa francesa no Brasil; porém, apenas por não ser francês – isto é, por conta de um elemento discrímen vinculado exclusivamente à nacionalidade -, não foi lhe aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concedia vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa.

Nesse julgado, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a postura do empregador violaria o princípio da igualdade, devendo-se aplicar, ao trabalhador brasileiro, o mesmo Estatuto aplicado aos trabalhadores de nacionalidade francesa, com todas as suas vantagens.

A ementa do referido julgado segue abaixo:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. – Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. – R.E. conhecido e provido. (RE 161243, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 29/10/1996, DJ 19-12-1997 PP-00057 EMENT VOL-01896-04 PP-00756)

Como se pode perceber, a produção jurisprudencial no país não ignora a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, especificamente nas relações de emprego.

No entanto, muito ainda precisa ser debatido sobre o tema, especialmente no que tange aos parâmetros para a aplicação dos direitos fundamentais, a fim de que se evitem decisionismos judiciais, conforme já alertado em capítulo anterior.

Como uma forma de contribuição para a busca desses parâmetros, trazemos à baila o seguinte caso: o §1º do art. 462 da CLT permite que o empregador efetue desconto no salário do empregado quando este vier a lhe causar dano a título de dolo. Veja-se o que dispõe o citado artigo:

Art. 462 – Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositvos de lei ou de contrato coletivo. § 1º – Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.

Imagine-se, pois, a seguinte hipótese, por nós criada: o empregado vende a um cliente determinado produto e recebe um cheque que, posteriormente, vem a ser devolvido por falta de provisão de fundos. O empregador, suspeitando de dolo por parte do empregado – um suposto conluio entre ele e o cliente, a exemplo -, desconta do seu salário o prejuízo da venda.

Nesse caso, além do fato de o empregador ter transferido o risco de sua atividade ao empregado, o que não se admite, revela-se inconcebível o fato de o desconto salarial ter ocorrido sem que fosse ofertado ao empregado o contraditório.

Ora, a investigação sobre a existência de dolo perpassa, necessariamente, pelo estabelecimento do contraditório, com a necessária oitiva da parte acusada. Para tanto, bastaria um encaminhamento de uma carta ao empregado para que ele apresentasse as suas razões sobre o acontecido em um prazo razoável.

Isso porque, em razão da natureza do dolo estar vinculada à intenção, ao querer do agente – no caso, empregado -, é absolutamente imprescindível que eventual punição a ser adotada por parte do empregador venha precedida da oitiva do empregado, isto é, da instauração do contraditório; do contrário, a punição carece de lisura, desaguando em verdadeira arbitrariedade.

Daniel Sarmento e Fabio Rodrigues Gomes, em artigo publicado para a Revista do Tribunal Superior do Trabalho (Brasília, vol. 77, n. 4, out./dez., 2011), elencam alguns interessantes parâmetros a balizar a aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego, o que se passa, doravante, a analisar.

Segundo os mencionados autores, se o empregador for um ente de grande envergadura, com grande número de empregados, cuja atuação for pautada por interesses econômicos, deverá existir uma preferência prima facie para o direito fundamental do empregado em detrimento da conduta restritiva do empregador, haja vista que a relação jurídica existente é marcada por intensa desigualdade fática, e em jogo não estão liberdades existenciais do empregador.

Se a natureza da atuação do empregador for a de uma entidade integrante da Administração Pública direta ou indireta ou de entidade que desempenhe função de natureza eminentemente pública, deverá existir uma preferência prima facie para o direito fundamental do empregado. Aqui, segundo os autores, a vinculação do empregador aos direitos fundamentais é ou equivale àquela imposta ao Estado.

Se a natureza do empregador for a de micro, pequeno, empresário individual ou entidade sem fins lucrativos, a preferência prima facie do direito fundamental do empregado deverá ser mitigada, em razão da redução da desigualdade fática e da maior proximidade pessoal entre as partes contratantes.

Se a natureza do empregador for a de organização de tendência, deverá continuar a existir a preferência prima facie do direito fundamental do empregado, mas com a possibilidade de inversão desta presunção, especialmente quando a discussão envolver a opção ideológica constante da própria finalidade da atividade empresarial (v.g., uma escola religiosa ou um partido político). Mas desde que o empregado possua ciência no momento da admissão.

Se a natureza do empregador for a de empregador doméstico, não deverá existir preferência prima facie do direito fundamental do empregado, uma vez que este não estará se inserindo no bojo de uma atividade econômica, mas, sim, no entorno de um ambiente residencial/familiar, no qual deve ser preservada uma margem de arbítrio, que é também uma liberdade emocional.

Estabelecendo um último critério, os autores apontam que, independentemente da natureza da atuação do empregador, haverá uma reforçada preferência prima facie para o direito fundamental do empregado sempre que a conduta restritiva do empregador colocar em jogo alguma qualidade intrínseca ou existencial do trabalhador (v.g., raça, gênero, idade ou nacionalidade). Deve-se exigir, nestes casos, ainda segundo os autores, uma justificativa mais intensa do empregador, atentando-se, inclusive, para o impacto desproporcional acarretado pela decisão patronal. Será sempre essencial perquirir a razão justificadora da restrição ao direito fundamental do trabalhador.

Todos esses critérios estabelecidos por Daniel Sarmento e Fabio Rodrigues Gomes, não obstante a sua extrema pertinência e coerência, não retiram a importância do princípio da proporcionalidade, a ser analisado caso a caso. E também não esgotam o tema.

Conforme já mencionado, a jurisprudência pátria não ignora a eficácia horizontal nas relações de emprego; no entanto, até mesmo por se tratar de um tema relativamente recente, carece de parâmetros concretos para a sua aplicação, merecendo uma reflexão e um aprofundamento teórico por parte de todos os operadores do direito.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais é um campo riquíssimo de estudo e análise. O principal motivo é que os direitos fundamentais surgiram sob um prisma vertical (particular-Estado). Precisamos, pois, de referenciais teóricos que reforcem a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e, mais do que isso, forneçam parâmetros que balizem as decisões judiciais.

No caso do Brasil, um país marcado por intensas desigualdades, a incidência dos direitos fundamentais sobre a relação entre particulares, especialmente nas relações de emprego, mostra-se ainda mais premente.

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Carlos Alexandre Bittencourt
Carlos Alexandre Bittencourt
Sócio Proprietário do Escritório de Advocacia Bittencourt e Silva Advogados. Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-Graduado em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba (ESMAT13). Advogado militante.

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